terça-feira, 2 de agosto de 2011

Oh, pedaço de mim!

Crônica da Semana: 24 a 30.07.2011

A música “Pedaço de mim”, de Chico Buarque, tocada ao final de uma reunião dos aniversariantes do mês de maio, de uma cooperativa de médicos, “bateu” profundamente por uma de suas frases – “... a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu...” – e também pela temática da saudade daquele pedaço da gente que foi afastado, exilado, amputado ou arrancado “de mim”.
Mas o que é saudade? Nos dicionários, saudade é recordação suave e melancólica de pessoa ausente, de local ou coisa distante, que se deseja voltar a ver ou possuir. Melancolia é tristeza vaga, indefinida, com inibição das funções motoras e psicomotoras. Isto é, a gente se sente meio parado. E tristeza? Tristeza é a falta de alegria ou contentamento. Ora, então, assim, quem está com saudade não está alegre.
Essa compreensão do sentimento de saudade é costumeiramente exaltada pelos poetas com uma carga talvez freudiana de irreparabilidade, especialmente, quando se trata de uma perda de alguém querido, pior ainda quando se trata de uma filha: “ferida narcísica irreparável”.
Mas se é assim o que dizer de algumas expressões que invocam ser a saudade a água que mata a sede? Ou o que dizer do ditado “recordar é viver”?
Se nos remetemos à gênese do termo saudade, reconhecendo sua origem portuguesa, o mesmo demonstra a fidalguia de compreender a ida dos nobres filhos portugueses a se enveredar por aventuras nos mares e daí se o descreva como “um sofrer contente, feliz por saber que a dor da ausência existe, pois se ama e se é amado”.
Mas, em geral, a saudade é uma mistura de sentimentos, os quais envolvem a perda, a impossibilidade do reencontro imediato e um amor ou carinho profundos, que se traduzem em uma dor ou sensações, que em regra estão fora do que se poderia considerar normal, por isso relaciona-se saudade com tristeza.
De fato, a memória, aquela que nos dá a capacidade de realizar e de relacionar as coisas entre si, construindo associações, e que faz a nossa sobrevivência possível, é um mundo de fantasias que não se estanca. Porém, sem querer relacionar saudade com solidão e modificando a palavra de Rubem Alves, é possível dizer que a tristeza não vem da saudade, mas sim das fantasias que surgem com a saudade.
Conforme Aristóteles “o ato de conhecer começa pelos sentidos” e para ele “quem encontra prazer na solidão, ou é fera selvagem ou é Deus”. Por analogia quem sente saudade exercita o conhecimento de si e não tem solidão, porque mesmo com alguma tristeza, dor e talvez lamentação, pode encontrar prazer no sentimento porque, enfim, é uma maneira de estar próximo de um amor incondicional, permanentemente revivido pela memória.  
Reforça esse pensamento a visão do sentimento de Freud pela perda de sua filha Sophie, pois para ele a dor segue o seu curso natural, o rumo que deveria ser. Mas a saudade, interpretando o mestre, é “a única maneira que temos de perpetuar um amor que não queremos abandonar”.
Na verdade, parece ser razoável e lógico assimilar, que mesmo que queiramos desconstruir o olhar, os sinais, o vulto, o que há do “pedaço de mim” em nós, porque a saudade “dói latejada”, ele sempre estará conosco e o melhor é ter a coragem de vivenciá-lo, re-significando o que dele lhe faz mal, mesmo que seja ao arrumar o quarto da filha que já morreu.

Alci de Jesus

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